sexta-feira, 27 de junho de 2008

Rememoração radical


Para o Sufi a rememoração de Deus, sempre e em todo lugar, é a meta da existência. Mas Quem ou que é Deus, e o que significa "recordar"?
É a linguagem humana capaz de expressar, ou ao menos anunciar em direção à realidade desta palavra Deus? Algumas pessoas – em especial aqueles que favorecem uma visão puramente existencial ou científica do mundo — se sentem turbadas quando se usa esta palavra. Outros se voltem autocomplacentes e farisaicos. Quiçá é melhor ficar algo que turbado com a idéia de Deus, sobretudo se esta turbação nos faz romper o cascão de nossas idéias fixas. Seja o que for, Deus não é um de nossos conceitos fixos.
Não se pode, como ser humano, deixar de perguntar-se acerca do significado real de ser um indivíduo, uma pessoa com consciência de si mesma. Cada um de nós tem uma chama de consciência em seu núcleo. Qual é a natureza desta chama e que é que a incendiou em nosso interior? Essa consciência, ou estado consciente, é o fato mais surpreendente de nossa existência, e ao mesmo tempo o que mais correntemente damos por judicioso.
Diz-se em nossa tradição "Tu és o segredo de Deus. E Deus é teu segredo."
Para o gnóstico, Deus deve ser conhecido através da chama da consciência. Evocar a Deus, recordá- lO, é ter presente essa chama de consciência. Mas só podemos ter consciência desta chama pela chama mesmo. Este é o paradoxo no qual se dissolve a realidade!
A chama da consciência existe em nós porque a consciência permeia o universo. Mas a palavra consciência implica algo mental, abstrato, quase impessoal. E se essa chama não for só da consciência, mas também de qualidades infinitas? E se o fogo não só convertesse calor e luz, mas Amor, Poder Criativo e Inteligência Infinita?
Que ocorreria então se o ser humano pudesse voltar-se consciente desta chama interior e entendê-la como uma chispa de criatividade infinita e ardor? E que aconteceria se a ativação de nossas qualidades humanas fundamentais dependesse de nosso grau de consciência de nossa conexão espiritual com a Fonte da Vida? Esta é a premissa central de nosso trabalho! É isto religião? É isto psicologia? É arte? É só sentido comum? Poderíamos chamá-lo de transformação em um ser humano completo? Não tem importância!

…e recordem a Deus como Quem os guiou… (Qur’an Sura Báqara, 2: 198).

Essa declaração, enganosamente simples, ordena-nos evocar e sugere que temos sido "guiados" a esta rememoração por "Al-lah". Rememoração é uma tradução da palavra árabe "zikr", que tem vários significados incluindo "mencionar", "evocar" ou "rememorar". Rememorar provém do Latim "rememorari". Rememorar, sem embargo, não é simplesmente chamar da memória algo do passado, mas sim trazer à mente, um estado de reter algo em nossa consciência. Somos recordados da necessidade de rememorar por Aquele que implantou a rememoração em nós. Essa aleya (ou versículo) qurânico é um véu delgado sobre a unidade do Ser: nossa rememoração é Sua rememoração!
Para o Sufi, essa evocação tem uma natureza essencial mais além das formas, que pode ser praticada em qualquer lugar e em todo momento.
…e o recordo de Deus é em verdade o maior bem. E Deus sabe tudo o que fazem. (Qur’an Sura al-Ankabut, 29:45)

A Rememoração mediante os Nomes de Deus
O "zikr" tem formas específicas, ou exercícios, que conduzem a experiências em diferentes níveis dentro de nosso ser. Al-Ghazali, um dos expoentes e intérpretes mais importantes do sufismo, deu as seguintes instruções a respeito da prática da rememoração: Permite que teu coração chegue a um estado tal qual a existência ou inexistência de qualquer coisa que seja indiferente – quer dizer, que não haja dicotomia entre o positivo e o negativo. Logo te senta sozinho em um lugar silencioso, livre de qualquer tarefa ou preocupação, já se trate de recitar o Qur’an, pensar em seu significado, preocupar-se com os ditados da religião, ou do que lê nos livros — não permitas que nada mais que Deus entre em tua mente. Uma vez nesse estado, comece a pronunciar com tua língua "Al-lah, Al-lah" mantendo tua mente nisso.
Pratica isso continuamente e sem interrupção; chegarás a um ponto em que o movimento da língua cessará, e parecerá que a palavra flui só dela, em forma espontânea. Continua deste modo até que todo traço de movimento da língua haja desaparecido, enquanto o coração registra o pensamento ou idéia da palavra.
A seguir, com a invocação, chegará um momento no tempo em que a palavra deixará por completo o coração. Só a essência palpável ou realidade do nome permanecerá, unindo-se inevitavelmente ao coração.
Até esse ponto, tudo haverá dependido de tua própria vontade consciente; o êxtase Divino e a iluminação que podem derivar-se dali em diante, no tem nada a ver com tua vontade consciente ou eleição. O que havias feito até esse momento é abrir uma janela, por assim dizer. Haver-te-ás exposto ao que Deus possa alentar ou infundir em ti, como O fez com Seus Profetas e Walys (Amigos).
Realiza-se o que lhe foi dito mais acima, podes estar seguro de que a luz da Verdade assomará em teu coração. No começo, de forma intermitente – como o brilho dos raios - chegará e se irá. Às vezes pode permanecer só alguns instantes. (Aa alquimia da felicidade)
O método para alcançar a "Verdade" começa com essa prática simples e formosa de repetir "Al-lah", o Nome Essencial de Deus. Apenas o mover a língua com certa intenção e presença mental somos conduzidos ao interior da realidade do Nome, até que "só a essência palpável ou realidade do nome permanecerá, unindo-se inevitavelmente ao coração". Mediante esse simples processo, a rememoração é transferida desde a língua à mente, da mente aos sentimentos e aos níveis mais profundos da personalidade, até que sua realidade é estabelecida no núcleo do ser humano.
Cada vez mais, a rememoração começa a preencher nossas vidas. Em lugar dos diálogos internos habituais, comentários, juízos e opiniões que formam a maior parte da vida interior das pessoas, podemos começar a experimentar a respiração e o ritmo da rememoração. Os Nomes Divinos se vem como algo vivo, animados, espiritualmente prolíficos – muito mais reais que os guiões repetitivos de nossa personalidade superficial.
Esse caminho não requer nenhum impulso excepcional de fé, nenhum abandono da razão, nenhuma teologia complexa nem logro intelectual. A invocação simples e atenta do Nome essencial de Deu, levar-nos-á à realidade do que está sendo evocado.

A Rememoração do Coração
A evocação que começa com a língua nos pode conduzir à evocação feita com o coração. Quiçá é evidência da generosidade divina o que aquilo que começa com uma simples repetição de uma palavra nos pode conduzir ao Segredo dos Segredos. A repetição da palavra "Al-lah" focaliza nosso pensamento em Deus. O ritmo da rememoração inevitável afeta as ondas cerebrais e os envoltórios superficiais da mente se acalmam. Nessa quietude transparente da mente superficial se revela um nível mais profundo da mente. É aquele nível mais profundo da mente, chamado coração, o que é capaz de perceber "algo" que não é apreciável nem pelo intelecto nem pelos sentidos. Parecera que se voltar consciente deste algo tem o efeito de classificar a mente, harmonizar as emoções, intensificar os sentidos e trazer paz ao coração.
…em verdade, na recordação de Deus encontram os corações seu sossego. (Qur’an Sura ar-Raad, 13:28)
E mantém-te com paciência ao lado daqueles que invocam a Seu Sustentador de manhã e à tarde, buscando Sua face, e não permitas que teus olhos passem sobre eles em busca das galas deste mundo; e não presta atenção àquele cujo coração fizemos negligente de Nosso recordo porque seguiu sempre seus desejos unicamente, abandonando tudo quanto é bom e verdadeiro. (Qur’an Sura al-Kaf, 18: 28)
Os Ocidentais que estão familiarizados com diversos caminhos espirituais poderiam perguntar-se: qual é a diferença entre "zikr" e meditação? Se por meditação entendemos aquele refinado "escutar interior", a ativação de uma presença capaz de observar os eventos internos e externos sem se ver absorvida por eles, então se tem muito em comum. Podemos, sem embargo, distinguir o Zikr das técnicas de concentração mais superficiais. A rememoração é mais que um exercício realizado por um indivíduo com propósitos pessoais tais como lograr calma, claridade, ou relaxamento. Enquanto que o Zikr é mais que isso. A evocação de Deus é estabelecer uma relação com O Ser Infinito, que está mais próximo de nós que nós mesmos, e, ao mesmo tempo, é maior que nós mesmos; muito maior do que tudo que possamos conceber. Também se experimenta como amar e ser amado pelo Amor.
Uma vez recebi uma carta de uma pessoa que levava anos de prática intensiva dentro do que descreveu como uma "tradição não-teísta". Nela explicava como, ao largo de todos seus anos de práticas espirituais, e apesar dos muitos benefícios de seus exercícios, seu coração não havia encontrado a Paz.
Durante um retiro solitário de três anos, começou a praticar um Zikr Sufi usando o Nobre Al-lah. "Quiçá há algo em se aproximar de um Deus que pode ser Nomeado. Meu coração, pela primeira vez, encontrou paz". Ele ignorava que estava citando o Qur’an quase que literalmente. É válida sua experiência, ou só é conformar-se com uma satisfação menor? Nossa compreensão da evocação/rememoração é que o Divino tem as qualidades do indefinível transcendente - como enfatizam as tradições não-teístas - e, ao mesmo tempo, o Divino tem um aspecto pessoal, íntimo, que se experimenta como uma relação profunda.
Ainda que a invocação dos Nomes ou Atributos de Deus é uma prática fundamental, essa rememoração pode e deve impregnar todos os estágios de capacidades e atividades humanas. O Qur’an exalta aos que recordam a Deus, de pé, sentados e quando se encostam [Sura Al-Imran, 3: 191], quer dizer: sob toda circunstância imaginável. O Sufismo tem muitas práticas que permitem que a rememoração seja incorporada a um nível corporal: as diversas posturas da Salaat, a oração; a cerimônia Mevlevi do giro; os movimentos grupais durante o Zikr de diversas Ordens Sufis.

A Rememoração ao refletir sobre a Unicidade (Tawhid)
A evocação também consiste no relacionamento mental e emocional de que tudo é uma manifestação de uma só Fonte de vida e de ser. Al-lah é a Unidade, e tudo na existência visível reflete as qualidades e a vontade de Al-lah, a vida e o ser de Al-lah. Ao observar o brotar das flores na primavera reconhecemos a "Al-Khaliq", o Criador, ou Al-Latif, o Sutil, e Al-Musawwir, o Criador da Forma. Quando vemos o poder de uma grande tormenta ou de um terremoto, reconhecemos e recordamos a Al-Aziz, o Poderoso, e Al-Yabbar, o Que Premia. Ao observar o incrível equilíbrio dentro da natureza poderemos reconhecer a Ar-Razzaq, o Provedor, Al-Wahjab, o Dispensador, e Al-Muhyi, o Que Dá a Vida, e As-Sabur, o Paciente.

Rememoração através do Louvor
Ao aprofundar nosso reconhecimento dos Atributos podemos ser conduzidos cada vez mais a um sentido de admiração respeitosa, a uma apreciação espontânea e a um agradecimento pela ordem invisível que se manifesta na existência.
Como se diz no Qur’an, e ali onde te voltes encontrarás a face de Deus [Sura al-Baqara, 2: 115]. O que evoca a Deus adquire sensibilidade para o mundo ademais de uma percepção das dimensões impalpáveis da existência.
Progressivamente os termos religiosos tradicionais de "louvor" e "glorificação" começam a corresponder à realidade que estamos experimentando. Podemos ser conduzidos a experiências de tal poder e beleza que nossa evocação diária pode, também, embelezar-se com a memória destes eventos. Podemos querer recordar a intensidade daquelas experiências nas quais os véus entre o terrenal e o divino se fizeram muito delgadas.

Rememoração por meio da Sensibilidade Moral
Outro aspecto da rememoração que deve ser incluído é a necessidade de uma sensibilidade ética /moral. Aa concepção Sufi – e isto significa Islâmica — de Deus também inclui um sentido do eqüitativo que tem o princípio de causa e efeito. Dado que nós – como indivíduos — somos integrais à totalidade desta realidade, cada ação nossa tem seu efeito no todo. O compreender isto nos compromete a lograr uma maior autoconsciência, uma maior sensibilidade a respeito dos efeitos e as conseqüências de nossas ações, sentimentos e pensamentos. Com essa nova sensibilidade, a consciência desperta e nossa personalidade e relações se refinam. Pode-se começar a caminhar mais docemente pela terra. O que começou como uma repetição mental se aprofundou até chegar a uma consciência mais permanente de todo o campo de existência permeado por uma presença moral e espiritual.

Rememoração através da Entrega e da União
Quem pode dizer onde termina essa evocação? Há estados de presença contemplativa pura nas quais o Espírito mesmo se transforma na experiência mais satisfatória imaginável e se é liberado de qualquer outra preocupação. Mediante essa experiência o Amor cresce, o submetimento do indivíduo isolado se torna possível. Deus diz no Qur’an:… assim, pois, recordai-vos de Mim e Eu me recordarei de vós. (Qur’an Sura al-Baqara, 2: 152)
O Sufi chega a saber que essa declaração não se refere ao tempo linear, não é uma proposição do tipo “se….", "então…”, são essenciais a intenção, o esforço a perseverança. Paralelamente, quando o ser humano rememora a Deus, é realmente a ação de Deus.
Em última instância, se se funde na Presença Divina semelhante às estrelas individuais que desaparecem na luz do sol.

e a recordação de Deus é, em verdade, o maior bem.(Qur’an Sura al-Ankabut, 29: 45)

Este ensaio forma parte do livro "O Coração Sábio" de Kabir Helminski.

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